Somos assim: somos o que pensamos, o que sentimos...e somos acima de tudo, aquilo em que acreditamos!
Nossos ídolos são nossos espelhos...refletem nossa alma, e nos levam ao encontro de nossos desejos, nossos sonhos, nossas fantasias, nosso eu mais profundo...e nos tornam muitas vezes mais fortes, porque acreditamos neles!
Somos assim: sedentos por nos apaixonar, por acreditar, por nos sentir vivos...e é isso que nos torna seres tão incrivelmente sedutores e apaixonantes!

quinta-feira, 9 de agosto de 2007

Hoje a receitinha é simples, e com gostinho de saudades...
Muitas pessoas conhecem essa, com outro nome, na verdade, o que importa aqui, não é o nome, nem a receita em si, que pode variar de acordo com a disponibilidade de certos elementos.Mas o significado, e alguns momentos que marcam nossa vida.Pode ser um soborô, ou um restodontê...ou simplesmente uma...

MINESTRA
Ingredientes:

o resto do arroz do almoço
o resto do feijão
aquela carne que é pouquinha, e não dá um pedaço prá cada um, desfiadinha, que é prá render(se não tiver a carne, não faz falta)
pode-se fritar um ovo,colocar o restinho do macarrão, ou uma verdura refogada...
O feijão tem que ser bem fritinho, depois se mistura todos os outros ingredientes...
Nas minhas lembranças, era tudo misturado numa panela de ferro, pesada e pretinha...um tiquinho de pimenta, prá dar um gostinho especial, a mãe, com a panela no colo, e um pano embaixo, prá não sujar a roupa, nem se queimar...uma colher, e os bocados de boca em boca...de todos os ingredientes, o melhor e insubstituível era o carinho e o amor, que nos unia em torno daquela panela. Tinha gostinho de quero mais.A receita passou aos netos...hoje, meu filho faz a MINESTRA...mesmo que não tenha resto, que esteja tudo fresquinho, e que haja fartura...esse gosto não tem igual.

Sempre tive um relacionamento amigável com os dicionários. Tenho um carinho especial pela nossa língua, admiro quem a respeita e sabe usá-la corretamente. Mas, nunca entendi muito bem, porque perdia tempos lendo e tentando conhecer e decorar vocábulos difíceis; adorava quando usava uma palavra nova, e me perguntavam o significado...me sentia importante, inteligente, culta.
Sem contar que corria logo a folhear as páginas desse "manual da língua", sempre que via ou ouvia uma palavra desconhecida...costume que mantenho até hoje, e tento passar aos meus filhos...dúvidas? Pega o dicionário, vamos ver!
Leio pouco, mas do pouco que leio, procuro absorver lições importantes e o mínimo de conhecimento necessário, para se manter diálogos inteligentes, sensibilidade ao reconhecer nossas riquezas verdadeiras, e, acima de tudo, a dignidade e o respeito, que o conhecimento nos proporciona.


Numa das minhas andanças pela net, encontrei um texto que me fez entender essa relação, e me emocionou muito.
A autora dispensa comentários, Cecília Meireles, portanto, quem se atrever a encarar essa viagem ao mundo dos vocábulos e dos sonhos, estará em boa companhia.
Boa leitura!

O Livro da Solidão/Cecília Meireles

Os senhores todos conhecem a pergunta famosa universalmente repetida: "Que livro escolheria para levar consigo, se tivesse de partir para uma ilha deserta...?"
Vêm os que acreditam em exemplos célebres e dizem naturalmente: "Uma história de Napoleão." Mas uma ilha deserta nem sempre é um exílio... Pode ser um passatempo...
Os que nunca tiveram tempo para fazer leituras grandes, pensam em obras de muitos volumes. É certo que numa ilha deserta é preciso encher o tempo... E lembram-se das Vidas de Plutarco, dos Ensaios de Montaigne, ou, se são mais cientistas que filósofos, da obra completa de Pasteur. Se são uma boa mescla de vida e sonho, pensam em toda a produção de Goethe, de Dostoievski, de Ibsen. Ou na Bíblia. Ou nas Mil e uma noites.
Pois eu creio que todos esses livros, embora esplêndidos, acabariam fatigando; e, se Deus me concedesse a mercê de morar numa ilha deserta (deserta, mas com relativo conforto, está claro — poltronas, chá, luz elétrica, ar condicionado) o que levava comigo era um Dicionário. Dicionário de qualquer língua, até com algumas folhas soltas; mas um Dicionário.
Não sei se muita gente haverá reparado nisso — mas o Dicionário é um dos livros mais poéticos, se não mesmo o mais poético dos livros. O Dicionário tem dentro de si o Universo completo.
Logo que uma noção humana toma forma de palavra — que é o que dá existência ás noções — vai habitar o Dicionário. As noções velhas vão ficando, com seus sestros de gente antiga, suas rugas, seus vestidos fora de moda; as noções novas vão chegando, com suas petulâncias, seus arrebiques, às vezes, sua rusticidade, sua grosseria. E tudo se vai arrumando direitinho, não pela ordem de chegada, como os candidatos a lugares nos ônibus, mas pela ordem alfabética, como nas listas de pessoas importantes, quando não se quer magoar ninguém...
O Dicionário é o mais democrático dos livros. Muito recomendável, portanto, na atualidade. Ali, o que governa é a disciplina das letras. Barão vem antes de conde, conde antes de duque, duque antes de rei. Sem falar que antes do rei também está o presidente.
O Dicionário responde a todas as curiosidades, e tem caminhos para todas as filosofias. Vemos as famílias de palavras, longas, acomodadas na sua semelhança, — e de repente os vizinhos tão diversos! Nem sempre elegantes, nem sempre decentes, — mas obedecendo á lei das letras, cabalística como a dos números...
O Dicionário explica a alma dos vocábulos: a sua hereditariedade e as suas mutações.
E as surpresas de palavras que nunca se tinham visto nem ouvido! Raridades, horrores, maravilhas...
Tudo isto num dicionário barato — porque os outros têm exemplos, frases que se podem decorar, para empregar nos artigos ou nas conversas eruditas, e assombrar os ouvintes e os leitores...
A minha pena é que não ensinem as crianças a amar o Dicionário. Ele contém todos os gêneros literários, pois cada palavra tem seu halo e seu destino — umas vão para aventuras, outras para viagens, outras para novelas, outras para poesia, umas para a história, outras para o teatro.
E como o bom uso das palavras e o bom uso do pensamento são uma coisa só e a mesma coisa, conhecer o sentido de cada uma é conduzir-se entre claridades, é construir mundos tendo como laboratório o Dicionário, onde jazem, catalogados, todos os necessários elementos.
Eu levaria o Dicionário para a ilha deserta. O tempo passaria docemente, enquanto eu passeasse por entre nomes conhecidos e desconhecidos, nomes, sementes e pensamentos e sementes das flores de retórica.
Poderia louvar melhor os amigos, e melhor perdoar os inimigos, porque o mecanismo da minha linguagem estaria mais ajustado nas suas molas complicadíssimas. E sobretudo, sabendo que germes pode conter uma palavra, cultivaria o silêncio, privilégio dos deuses, e ventura suprema dos homens.
(SÃO PAULO, FOLHA DA MANHÃ, 11 DE JULHO DE 1948.)