Somos assim: somos o que pensamos, o que sentimos...e somos acima de tudo, aquilo em que acreditamos!
Nossos ídolos são nossos espelhos...refletem nossa alma, e nos levam ao encontro de nossos desejos, nossos sonhos, nossas fantasias, nosso eu mais profundo...e nos tornam muitas vezes mais fortes, porque acreditamos neles!
Somos assim: sedentos por nos apaixonar, por acreditar, por nos sentir vivos...e é isso que nos torna seres tão incrivelmente sedutores e apaixonantes!

terça-feira, 27 de maio de 2008

Como dois querubins


Hoje os meus olhos cruzaram mar
desbravaram um oceano sem fim
fitaram o azul dos olhos teus
que colhiam estrelas no céu
para enfeitar o meu jardim!

Ofertou-me os teus jasmins
num ramalhete de puro lume
flertou comigo, cobriu-me
entrelaçou-me em teus braços
banhou-me do teu perfume!

Feito dois querubins incólumes
adormecemos à maresia
nus dos nossos pecados
pelo nosso amor banhados
abençoados pelo novo dia!


Entalhe


Vida na roça é dureza. Mãos calejadas, coração que sangra, sol que escalda a fronte fazendo doer o não ter.
Sol que se levanta antes, Lua que se adianta. Cantoria no terreiro que redime o pouco que sobra do corpo cansado e surrado.Sob a luz da lua, vão se entoando as amarguras, tristezas, desalentos, e corpo e alma ficam um pouco mais leves.
Passa o tempo, a vida urbana substitui e ajeita o sem jeito da roça. Vêm os filhos, os netos, a rotina, a solidão da cidade, cimento armado sem verde, sem veias, sem cheiro, sem sabor.
Fica o gosto da terra, a lembrança doída dos árduos tempos, ruins e malfadados, trocados pela esperança de vida nova, com cheiro de uma saudade que não se compreende.

A herança roceira, caipira, não abandona o coração cansado do sertanejo novo, urbanizado. Chega um dia, em que busca-se o retorno, não ao chão que se deixou para trás, mas às raízes guardadas na memória.
Entre o asfalto escaldante e o movimento incontido das grandes cidades, busca-se um pedaço de terra, algo que aquiete o velho coração insatisfeito com as novidades da vida "muderna". Vida nova, com cheiro de mato, era isso que se queria o tempo todo. Era isso que minha mãe sonhava, e foi esse sonho que a vi cultivar durante toda minha vida.
No terreno ainda cheio de mato, o sonho vai tomando forma. Aos poucos, as mãos cansadas e ansiosas, vão moldando o que será um canto para conter lágrimas, cantorias, cheiro de roça, comida caipira. Coisa boa.

Minhas mãos também se cansaram nessa peleja, muitas vezes. Mas não doíam, era um cansaço satisfeito, com cheiro de chuva fresca, terra molhada, e som dos cantores da floresta. Não tenho no meu baú de lembranças som melhor do que esse.
Nas visitas aos fins de semana, podíamos acompanhar o andar da "carroça".
Paredes sendo levantadas, pés de frutas, aguadas. Um veio d'água fervilhando, vida que saltava aos olhos, e ,que pelas mãos de minha mãe, ia se abrindo e apontando em direção ao rio. Um sonho que se erguia entre rugas que se formavam.

Na matula que se aprontava para a viagem, marmitas prontinhas. Não havia fogão, nem gás, nem lenha ainda. Na hora de saciar a fome, reunía-mo-nos na escadinha da cozinha, degraus rústicos e mal feitos,comida caipira, cheirosa e saborosa. Como saboroso era aquele momento.

De repente, uma surpresa desajeitada. Na correria de aprontar-se, mamãe esqueceu os talheres. Como é que se come? Dúvidas tipicamente urbanas, ao que a velha vózinha, do alto de sua sapiência matuta, responde com um leve riso, e um tanto de ironia de quem se ri do despreparo dos mais jovens.

Senta-se à porta, aponta ao fundo do terreno cheio de mato, e pede, quase ordenando: "Cumpade, pega aquele bambu lá no fundo!" Troca de olhares indagando, e o cumpade(meu paizinho) obedece ligeiro que só, não convém triscar com a sogra.
Em poucos minutos, a vida mostra que a arte está onde há alma, memória, e sentido de ser.
As mãos calejadas e enrrugadas pelo tempo, tomam uma pequenina faquinha e vão, devagar e encantadoramente moldando do pedaço de bambú, pequenas colheres. Uma à cada um, personalizadas e únicas. Lindo trabalho artesanal, aprendido na escola da vida. O melhor dos sabores, a comida mais gostosa, um momento que marca minha memória, finca pé no meu coração, deixa cheiro e gosto de saudades.

E a vida segue seu rumo. Penso nos meus filhos, e nos filhos dos meus filhos,que vão aos poucos perdendo pedaços de uma história que não está nos livros. Talvez esteja um dia, mas as letras são incompletas, registram as memórias, mas não as tem. E não mostram o que está nas entrelinhas, muito menos o que há depois das reticências.