Somos assim: somos o que pensamos, o que sentimos...e somos acima de tudo, aquilo em que acreditamos!
Nossos ídolos são nossos espelhos...refletem nossa alma, e nos levam ao encontro de nossos desejos, nossos sonhos, nossas fantasias, nosso eu mais profundo...e nos tornam muitas vezes mais fortes, porque acreditamos neles!
Somos assim: sedentos por nos apaixonar, por acreditar, por nos sentir vivos...e é isso que nos torna seres tão incrivelmente sedutores e apaixonantes!

quarta-feira, 26 de setembro de 2007

Sobre (naturalmente) humana

Muitas vezes nos encontramos perdidos entre sombras e fantasmas que ficam arquivados na nossa memória. Nem sempre temos o resgate imediato desses registros, mas há momentos e situações que nos trazem á tona esses fragmentos, estilhaços, restos, que foram um dia afundados e, pensava-se, estarem para sempre esquecidos no mar das nossas lembranças.
Fui criança caseira, menina tímida e acanhada, criada nos moldes antigos e reservados da uma família humilde e politicamente correta.
Até os cinco anos, vivi num bairro simples, na cidade de Santo André (ABC paulista), vêm daí os meus primeiros fantasmas.
Numa rua com muitas crianças, uma época em que não se fazia muito calor naquela cidade, nas poucas e raras noites quentes, ou amenas, reuniam-se (as crianças) na calçada para brincar.
Passa anel, telefone sem fio, balança caixão, histórias de horror! Como era gostoso e ao mesmo tempo aterrorizante falar em fantasmas, almas penadas, monstros. Quem nunca teve esse gosto mórbido, que solte o primeiro grito, ou o primeiro uivo!
Não podia faltar entre as crianças daquela época, os mitos, as lendas, as histórias que os pais contavam quase sempre a fim de abrandar as almas inquietas e sapecas dos filhos.
Na nossa rua, no começo (ou no fim), nunca sei onde começa ou termina uma rua, havia um casebre muito velho, aparentemente abandonado, num terreno feio, todo desbarrancado e cheio de mato, onde diziam morar um velho feiticeiro mal e que não gostava de crianças.
Acho que aquele foi o meu primeiro fantasma. O segundo, veio logo após, e em conseqüência dele.



Estávamos numa dessas noites, sentados na calçada brincando, e falando do velho feiticeiro. Eu era uma das menores, devia ter uns quatro anos, mais ou menos, e morria de medo, apesar de nunca demonstrar, leonina valente que era.
Já escurecia, e mamãe nos chamou para entrar. Aterrorizada com as histórias, e doida para entrar logo, olhei para a Lua, buscando conforto em sua luz que ainda mantinha na rua um tico de claridade. Deparei-me então com meu segundo fantasma. Para meu desespero, a bela Lua havia se transformado num monstro horrendo, com chifres, olhos vermelhos e língua de fogo. Claro que tentei contar aos outros, maiores que eu, apontando o monstro e tentando convencê-los de que aquilo não era fruto da minha imaginação, muito menos do meu pavor. Sem sucesso, fui obrigada a entrar em casa, sentindo que aqueles olhos vermelhos iriam me seguir, por onde eu passasse.
Hoje, já sei que o velho feiticeiro era apenas um homem solitário e mal humorado provavelmente por causa das agruras da sua pobre vida, mas a Lua monstruosa, aquela que nunca mais me saiu da memória, tenho certeza, não foi fruto da minha imaginação fértil, muito menos do medo que eu fingia não ter, foi real, eu vi, e foi meu primeiro contato com o mundo sobrenatural, e o último, eu espero.



Situações diversas e muito além da imaginação de uma menina “avoada”como eu, fizeram com que nos mudássemos para o interior, onde moravam meus avós maternos.
Ali tive meu terceiro contato com o mundo sobrenatural, ou o que eu julgava sê-lo.
Família católica e tradicional, em cidade do interior, raramente recorria a médicos, sem antes buscar ajuda entre rezadeiras e benzedeiras. E estas foram, por algum tempo, fantasmas da minha meninice.


Morria de medo daquelas pessoas, que ficavam me olhando, sussurrando um não sei que de coisas, passando folhinhas pelo meu corpo, me fazendo o sinal da cruz na fronte, aspergindo com uma folha molhada a minha cabeça e a minha roupa. Seu Chiquinho, dona Zulmira, Felipe Manhoso, pessoas estranhas e cheias de mistérios.
Hoje, levo meus filhos ao médico, e tenho que fazer um relatório detalhadíssimo, se quiser que o Doutor chegue a um diagnóstico razoável e aceitável. Naquela época, levava na benzedeira, e pronto, “tirava com a mão”, como diziam os mais antigos.


Fé da rezadeira? Ou fé da minha mãe? Ou uma conjunção de crenças e ungüentos, que possuíam um misterioso poder curativo?
Ninguém sabe, ninguém viu, o certo é que essas personagens me assustavam profundamente.


Hoje, compreendo que existem pessoas realmente iluminadas, com tal pureza de espírito e amor fraternal, que são capazes, sem nenhum conhecimento intelectual, de compreender os mistérios e segredos desse universo que rege nossa existência, a tal ponto que chegam a exercer sobre ele, certa soberania, curando, consolando, trazendo paz e alento em momentos de dor e sofrimento. E, sem pedir nem exigir nada em troca, a não ser, que se tenha fé nesse poder curador e restaurador, a quem damos o nome de Deus.
Recentemente estive á procura de uma dessas rezadeiras. O descontentamento com nosso sistema de saúde, e os lampejos de fé, herdados das anciãs da família, me faz por vezes resgatar o passado. Sem sucesso. Elas não existem mais, ou quase não existem, assim como a fé, que parece escoar entre nossos dedos, fugir aos nossos olhos, abandonar nosso coração cansado.



Em reuniões de família, eram comuns os causos e histórias do passado. Muitas dessas, sobrenaturais e cheias de mistério. Como a história da Pisadeira, contada por uma das tias. Meu quarto fantasma.


Uma alma penada, que, se fizéssemos estripulia, viria nos visitar a noite. Chegava arrastando os pés, e balançava violentamente a cama. A única maneira de afastá-la, era rezando um creio em Deus pai (credo), até o final. Se parássemos no meio do caminho ela não iria embora, teria que rezar até o fim. Enquanto a tia contava, ficávamos de olhos atentos, assustados, morrendo de medo.
Chegava à hora de dormir, suspense, terror, medo. Por muito tempo senti minha cama balançar quando ia me deitar, e rezei, pelo sim e pelo não, vários credos. Nem sempre chegava ao fim, vencida pelo sono, mas conseguia espantar a tal alma que me atormentava e me tirava o sossego.



Ainda hoje tenho meus fantasmas pessoais e secretos. Sombras que passam de relance aos meus olhos, pequenos sons que vêm não se sabe de onde, geralmente à noite, quando todos dormem, e ficamos apenas eu e meus pensamentos. Nada que me tire mais o sossego, ou o sono, ou chegue a me atormentar a alma, apenas companheiros silenciosos nos momentos de solidão.



Com a entrada na adolescência, vieram os mitos da escola. E com eles, o mais conhecido e tradicional: a loira do banheiro. Meu quinto fantasma. Uma moça loira que havia sido assassinada em uma escola. Desde então, passou a assombrar os banheiros e os alunos, com suas aparições misteriosas, seu aspecto medonho, cheia de algodão no nariz, e sangrando muito. Algodões espalhados pelos banheiros, molhados em algum líquido vermelho, compunham um cenário medonho e aterrorizante, que confundia os mais medrosos, e criava um clima entre os alunos, que ia do medo à zombaria.
Mesmo já sabendo que se tratava de uma lenda, um mito, não custava nada examinar os banheiros antes de acomodar-se, e, quando possível, a prudência e o pavor, faziam-nos optar pelas turminhas. Assim, unia-mos nossos medos, e enfrentávamos a tal assombração. O que muitas vezes, acabava tornando-se uma boa farra.
Ainda hoje se fala na loira do banheiro. Porém agora, mais em tons de zombaria do que pavor. As assombrações de hoje são um pouco di
ferentes. Mas volto a elas depois.



Com a entrada na puberdade, a maturidade vem acompanhada de alguns fantasmas reais. Passa-se aqui, a entender melhor certos percalços da vida, e a sentir mais as perdas. As mortes de entes queridos passam a fazer parte das nossas lembranças, e a compor um sentimento de medo do desconhecido. Minha sexta experiência sobrenatural vem com essas perdas.
Perder alguém que se ama, e, de quem vai sentir-se a ausência como uma lança, a estocar o peito, nos faz muitas vezes desejar esse contato. Algo que nos traga um consolo, que torne menores a dor e a saudade, que nos dê sinais de um possível reencontro, que nos aquiete a alma e nos faça embalar essa dor, até que ela cesse, ou pelo menos, torne-se suportável.
Minha primeira perda realmente sentida vem com a morte do avô materno. Alguém cuja presença em minha vida, teve um valor sem medidas, mas do qual só me dei conta, após sua partida.
Por muitas vezes, desejei este encontro. Meu desejo suplantava o medo do deconhecido, do sobrenatural; o encontro não aconteceu, pelo menos não no plano material (ou imaterial), mas a alma aquietou-se, as lembranças boas se sobrepuseram ao sentimento doído da perda, e aos poucos, o coração tem aprendido a sentir essas dores, sem ressentir-se da crueldade do destino.



Com o passar do tempo, com a maturidade que chega muitas vezes a fórceps, feito um parto forçado e traumatizante, nossos fantasmas tomam forma e materializam-se. Perdem a inocência e tornam-se nossos inimigos reais.
Diante da violência do mundo moderno, e, vivendo num clima de insegurança e medo reais, conheci meu sétimo fantasma. Talvez o mais real e pavoroso.



Vivi com minha família momentos de extremo terror, sessenta minutos de medo, pelos quais vi passar o filme da minha vida, nos quais resgatei inconscientemente, grande parte da minha fé, (em Deus), e onde também perdi um bom tanto dela (nos homens).
Um assalto à mão armada, felizmente sem conseqüências mais graves, mas que nos trouxe um medo lactente, um clima de insegurança insuportável, e uma tristeza irreparável pela decadência do amor e respeito ao ser humano.
Por muitos dias dormimos amontoados, os cinco membros da família, num único quarto, de portas fechadas, passamos a nos recolher mais cedo, hermetizamos nossa casa com cadeados em todas as janelas e trancas nas portas, passamos a desconfiar das nossas próprias sombras. Senti saudades do velho feiticeiro, da lua tenebrosa, da loira do banheiro.
Felizmente, aos poucos a sensação de medo foi abrandando, mas não sem antes tomarmos como providência emergencial, a contratação de um guardião valente que nos protegesse do perigo, no caso, uma guardiã, uma cadelinha simpática e sem pedigree, amiga e co
mpanheira, que amenizou um pouco do pavor, e trouxe um tanto a mais de sossego à nossa casa.
Ao contrário dos outros fantasmas, este, não vai embora, não vai tomar forma de lembrança do passado, faz parte dos tempos modernos, e vai continuar a nos assombrar pelo resto de nossas vidas, ou, até que um milagre faça tocar o coração do homem, a ponto de fazê-lo perceber quanta riqueza se perde, quando se coloca o ouro (de tolo), acima dos bens naturais e preciosos da alma humana.



Mas os tempos modernos também nos trazem outros tipos de fantasmas, aqueles com os quais se pode vencer a teimosia e empáfia dos filhos, ameaçando e aterrorizando, ou por outra, tirar o sossego de pessoas normais, como donas de casa, totalmente dependentes de certos confortos da vida moderna.



Prive o homem moderno de suas necessidades materiais, e pronto! O terror está instalado. Tire o celular do trabalhador, da dona de casa, do estudante, e pimba, que medo! Tire o computador dos filhos, da dona de casa, do executivo, advogado, professor, e pow! Medo!
Meu cunhado vem para mim e diz: “Mônica, o pc está precisando formatar!” Isso significa alguns dias apenas sem ele, nada grave.
Um piscar de olhos, uma fração de segundo, e será preciso um pé de cabra para me desgrudar do bichinho. Deixa o coitado cheio de vírus, lento feito uma tartaruga, maluco de pedra, mas não o tire de mim, não me prive da sua companhia, isso não.
Como disse Vanessa da Mata: “Eu tenho medo do escuro, tenho medo do inseguro, dos fantasmas da minha voz!”.


Rivaldo Barboza é o autor da ilustração deste texto, chamada Ghost. Veja mais aqui.