Somos assim: somos o que pensamos, o que sentimos...e somos acima de tudo, aquilo em que acreditamos!
Nossos ídolos são nossos espelhos...refletem nossa alma, e nos levam ao encontro de nossos desejos, nossos sonhos, nossas fantasias, nosso eu mais profundo...e nos tornam muitas vezes mais fortes, porque acreditamos neles!
Somos assim: sedentos por nos apaixonar, por acreditar, por nos sentir vivos...e é isso que nos torna seres tão incrivelmente sedutores e apaixonantes!

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Surra de peia

A passagem que eu conto agora
Não tem príncipes nem reinos
não é de amor essa história,
mas tem amor nos enleios.

Num sertão dos cafundó
numa terra esquecida
vivia um pai muito só
seu filho era sua família.

Esses pobres, pai e filho,
de tristezas faziam dó
abandonados pelo destino
que da vida apertava o nó.

A seca cruel e medonha
dizima muitas famílias
naquela a dor foi tamanha
levou mãe, e duas filhas.

O pai em desatino de morte
garrô firme na bebedeira
tentando afogar a má sorte
e a tristeza derradeira.

O filho sem muita certeza
daquela ventura ingrata
fazia danura e proezas
e caía na peia e chibata.

E assim a vida passava.
Entre muitas surras de peia
muitos porres, chibatadas,
e a miséria que aperreia.

Mas o destino maltrata
às vezes até exagera
e em outras ele desata
nós que ninguém espera.

Numa das suas mazelas
dá uma lição nesses dois
ensina que quem cria feras
colhe feridas depois.

Num desses embates danados
o menino se vê em falso
o pai na cachaça afogado
ajeita a peia no encalço.

Corre desajeitado,
sem galeio nem firmeza
mas tá destinado ao fato:
Tem castigo essa proeza.

Grita o pai embriagado:
Arre, que dessa vez eu te cato!
vem aqui seu renegado!
É hoje que eu te mato!

No fundo do sítio seco
duas grandes amoreiras
servem sempre de alento
nessas horas derradeiras.

Corre moleque danado
cria asas nesses pés
sobe e espia calado
que hoje acaba esse revés.

O que houve não se sabe
não concebe explicação
não tem dotô e nem padre
que responda essa questão.

A peia do pai malvado
contra ele se voltou
e o filho agora assustado
sua sorte espiou.

Era tamanha a aberração
do pai se batendo sózinho
que o filho de coração
sentiu a dor do paizinho.

Vendo escorrer a sanguera
dos cortes que a peia fazia
desceu logo da amoreira
e viu o pai na agonia.

Arrastou seu pai de mal jeito
o peso era demais prá um mirrado
era bem grande o sujeito
e o filho lhe deu cuidado.
Limpou suas feridas
fez curativo ajeitado
acarinhou o paizinho
sentindo remorso o coitado.

Depois desse episódio
a miséria não estancou
as feridas e o ódio
do peito foi que apagou.

O amor do pai e do filho
naquela dor partilhada
foi como a flor do sertão
que floresce em meio ao nada.

E os dois em meio à miséria
de uma vida muito triste
agora têm a certeza
de que o amor resiste.

Tem poder de curar dor
tem força prá suportar
só quem vive sem amor
é que morre sem lutar.

Não carece de aplaudir
nem fazer exaltação
o que lhes contei aqui
são coisas do coração.

É só uma história triste
com final mais a contento
é só o amor que insiste
em não ver mais sofrimento.
(A imagem que ilustra o texto é Retirantes, de Cândido Portinari.)