A passagem que eu conto agora
Não tem príncipes nem reinos
não é de amor essa história,
mas tem amor nos enleios.
Num sertão dos cafundó
numa terra esquecida
vivia um pai muito só
seu filho era sua família.
Esses pobres, pai e filho,
de tristezas faziam dó
abandonados pelo destino
que da vida apertava o nó.
A seca cruel e medonha
dizima muitas famílias
naquela a dor foi tamanha
levou mãe, e duas filhas.
O pai em desatino de morte
garrô firme na bebedeira
tentando afogar a má sorte
e a tristeza derradeira.
O filho sem muita certeza
daquela ventura ingrata
fazia danura e proezas
e caía na peia e chibata.
E assim a vida passava.
Entre muitas surras de peia
muitos porres, chibatadas,
e a miséria que aperreia.
Mas o destino maltrata
às vezes até exagera
e em outras ele desata
nós que ninguém espera.
Numa das suas mazelas
dá uma lição nesses dois
ensina que quem cria feras
colhe feridas depois.
Num desses embates danados
o menino se vê em falso
o pai na cachaça afogado
ajeita a peia no encalço.
Corre desajeitado,
sem galeio nem firmeza
mas tá destinado ao fato:
Tem castigo essa proeza.
Grita o pai embriagado:
Arre, que dessa vez eu te cato!
vem aqui seu renegado!
É hoje que eu te mato!
No fundo do sítio seco
duas grandes amoreiras
servem sempre de alento
nessas horas derradeiras.
Corre moleque danado
cria asas nesses pés
sobe e espia calado
que hoje acaba esse revés.
O que houve não se sabe
não concebe explicação
não tem dotô e nem padre
que responda essa questão.
A peia do pai malvado
contra ele se voltou
e o filho agora assustado
sua sorte espiou.
Era tamanha a aberração
do pai se batendo sózinho
que o filho de coração
sentiu a dor do paizinho.
Vendo escorrer a sanguera
dos cortes que a peia fazia
desceu logo da amoreira
e viu o pai na agonia.
Arrastou seu pai de mal jeito
o peso era demais prá um mirrado
era bem grande o sujeito
e o filho lhe deu cuidado.
Limpou suas feridas
fez curativo ajeitado
acarinhou o paizinho
sentindo remorso o coitado.
Depois desse episódio
a miséria não estancou
as feridas e o ódio
do peito foi que apagou.
O amor do pai e do filho
naquela dor partilhada
foi como a flor do sertão
que floresce em meio ao nada.
E os dois em meio à miséria
de uma vida muito triste
agora têm a certeza
de que o amor resiste.
Tem poder de curar dor
tem força prá suportar
só quem vive sem amor
é que morre sem lutar.
Não carece de aplaudir
nem fazer exaltação
o que lhes contei aqui
são coisas do coração.
É só uma história triste
com final mais a contento
é só o amor que insiste
em não ver mais sofrimento.
(A imagem que ilustra o texto é Retirantes, de Cândido Portinari.)